Exclusivo! Entrevista ao Santinho de Terra Brava: «O meu pai pôs-me fora de casa!»

Por discordâncias políticas, o pai ‘convidou-o’ a sair de casa e ele obedeceu-lhe. Tinha 18 anos. Aos 66, o Santinho de Terra Brava recorda a infância, os avós, as mulheres, os filhos e muito mais.

20 Fev 2020 | 8:10
-A +A
TV 7 Dias – Tem 66 anos. É natural de onde?

António Fonseca – Santo Tirso. Quando nasci, a freguesia chamava-se Burgães, onde vivi até aos 19 anos. Também vivi no Porto, porque estive lá a estudar.

O que guarda desses tempos?

Comparando com os padrões da vida de hoje, sinto que era uma vida muito difícil mesmo. Vivi muito com os meus avós, que eram rendeiros numa quinta, e eu trabalhava lá, com os bois e as vacas, na agricultura. Vivíamos… não era mal… mas era muito pobre.

Os seus pais faziam o quê?

O meu pai era chefe de armazém numa fábrica têxtil e a minha mãe era doméstica. A vida era repartida entre as brincadeiras no campo, a escola e a trabalhar. Como a minha avó dizia, ‘trabalho de menino rende pouco, mas quem não aproveita é louco’. Trabalhávamos todos à nossa medida, às vezes ao pontapé, era um universo que fazia sentido.

Era feliz?

Olhando para trás… era. Sou! Fui feliz.

Há algo que o tenha marcado?

Uma vez, tinha para aí quatro anos, um boi zangou-se e deu-me um coice. Eu fiquei com a cara toda inchada. Os meus tios ficaram muito aflitos. Podia ter morrido. A morte está lá sempre, a gente agora é que acha que somos eternos. Havia crianças que nasciam mortas, outras que morriam… a morte fazia parte da vida.

Porque diz que as pessoas hoje em dia acham que são eternas?

Porque a gente consegue ultrapassar os perigos todos… a saúde, a medicina, a alimentação, parece que tudo está muito protegido. Eu não tenho nada contra. Sei lá, a gente podia morrer do sarampo ou do tétano, porque se apanhava e fazia parte, era normal. E hoje não é assim. O meu avô era chauffeur de um doutor lá em Santo Tirso, e eu, com seis anos, fazia três quilómetros por uma estrada de Guimarães-Porto, ia sozinho com um saquinho para levar-lhe o almoço, e voltava sozinho, estrada abaixo, estrada acima.

Mas não acha que hoje há mais perigos e que não corria, por exemplo, o risco de ser raptado…

É evidente que é tudo isso, mas nós também fazemos os perigos. Estamos paranóicos. Temos medo de morrer.

Não considera que se uma pessoa não tem medo da morte é porque acha que já viveu tudo?

Não! Tudo o que viveste está vivido e para a frente, amanhã, é mais um dom, se tiveres o dia de amanhã, ótimo, agradeces; se não tiveres, vais.

Se soubesse que iria morrer amanhã, como reagiria?

Não faço ideia, mas acho que não me punha a correr. Dizia ‘ok. Respira fundo e curte os últimos minutos de vida’.

Haveria alguma coisa que fizesse rapidamente?

Nunca pensei nisto e estou a pensar agora… Isolava-me num sítio e deixava-me morrer. Se calhar deixava uma pista para não andarem aflitos à minha procura, porque acho que a coisa pior da morte é para as pessoas que ficam. Para essas é que é mau.

Já perdeu alguém muito próximo?

Já. Perdi o meu pai há quatro ou cinco anos, foi assim um baque muito grande que eu não estava à espera, a minha avó, que eu gostava imenso e foi a coisa que mais me tocou, e o meu avô. Nessa altura as pessoas morriam em casa e fazia-se o velório em casa. O meu avô estava ao pé do caixão e quando entrei ele agarrou-se a mim a chorar. Eu tinha 16 anos e ele nunca me tinha dado um abraço na vida. Isso tocou-me imenso.

A morte é sempre difícil…

A do meu pai também me tocou imenso, foi um baque, uma coisa muito forte. O meu pai também era uma pessoa muito especial. Uma pessoa muito medrosa, que não arriscou nada, mas era um ser humano incrível, de uma serenidade incrível. Lembro-me que ia a casa duas a três vezes por ano, e eu ia lá e a casa estava desconfortável, não faziam obras naquilo. Ele não era rico, mas tinha dinheiro.

Eram poupados e amealhavam para qualquer imprevisto na vida?

Nem era pelo dia de amanhã, que ele já tinha 80 anos e tinha uma reforma razoável. Morreu com 90.

Se calhar queria deixar para os filhos…

Não sei o que era, mas porque é que hei de gastar em coisas que não preciso?

Hoje em dia as pessoas não são tanto assim.

E porquê? Porque compram coisas e gastam em coisas inúteis. Dois carros e três carros para quê? Dez pares de sapatos para quê? Por isso é que vamos todos morrer afogados em lixo. Não faz sentido. Mas vou contar a história do meu pai, a quem eu dizia: ‘Faça umas obras aí, por amor de Deus, mude as janelas”… e ele dizia-me: ‘Ó filho, eu estou à espera de uma carta de chamada e ela há de estar aí a chegar, para que é que me vou chatear?’…

A carta de chamada era a morte?

Claro, o meu pai fazia a metáfora. Estava a referir-se à morte.

Deu dores de cabeça aos seus pais?

Não. Fui sempre muito atinado, muito respeitador, mais até do que devia. Era muito bom aluno, era o “ás” lá da terra.

Como é que vem a ser ator?

Ao acaso, aos 20, 21 anos, estava na Faculdade de Letras do Porto a fazer Filosofia e fui dar aulas para Trás-os-Montes, de
Português e História. Tinha alunos mais velhos do que eu. Vivia lá e os miúdos diziam-me que queriam fazer teatro e eu não percebia nada daquilo.

Começou a dar aulas muito novo.

Na altura era assim. Quando foi da reforma do Veiga Simão, até 1969, 90 por cento da população só fazia a 4.ª classe, os que faziam. Era uma coisa horrível.

A 4.ª classe de antigamente dava muitos conhecimentos?

De que serve saber os rios todos, as linhas dos caminhos-de-ferro e os rios de Angola? Para nada! Era meter-nos na cabeça uma visão do Mundo que interessava a meia dúzia de gajos que lucravam com essa m**** toda. Não se tinha em conta a criança. Era muito mais interessante se me tivessem obrigado a decorar poemas da Sophia de Mello Breyner.

Chegou a apanhar tareia dos professores?

Muito pouco, porque eu realmente era bom e disciplinado. Mas lembro-me que apanhei três reguadas na segunda classe e para aí duas ou três na primeira. A minha professora da primária era de Bragança e muito tensa. Ela tinha o hábito de quando os alunos se portavam mal, faziam muitos erros ou outra m**** qualquer, punha-lhes umas orelhas de burro e mandava-os dar uma voltinha à escola das meninas. Era uma humilhação incrível. Eu comecei a entrar em pânico com aquilo e deixei de comer. Às tantas devo ter dito e o meu pai foi lá. Ela ficou aflita, chamou-me e disse: ‘Olha lá, eu alguma vez ia fazer uma coisa dessas a ti?’ e acabaram-se as orelhas de burro.

Então foi preparar-se para poder fazer teatro e apaixonou-se?

Eu não me apaixonei. Cheguei lá e fiz um teste. Eu era professor, ganhava bem, e disse-lhes que não queria ser ator, e que queria aprender para ensinar. Eu tinha uma bolsa e algum dinheiro que tinha juntado, 52 contos, que dava para comprar uma Diana de dois cavalos [N.R.: Citroën]. Já não pedia dinheiro aos meus pais há dois anos, era uma questão de princípios. E fui. Lembro-me bem. Hoje não, porque já estou velho, mas ainda há poucos anos eu dizia ‘eu deixo isto e vou fazer outras coisas’. Não vou sacrificar o presente, este momento por um sonho.

Quais são os seus sonhos?

O meu sonho é estar quieto, ser feliz e estar bem comigo e com os outros.

E não retira prazer de uma viagem, por exemplo?

(Hesita) Não me seduz. Já conheço a Europa praticamente toda. Gosto muito dos Açores, mas a viagem é a coisa pior. Não me seduz nada, por exemplo, ir à Índia. Estive em Moçambique há 20 anos para fazer um filme. Estive lá um mês. Aquelas pessoas eram incríveis. Não tinham nada e eram incríveis. Estive o ano passado no Rio de Janeiro, a fazer um filme, Vida Invisível, que vai agora aos Óscares. Detestei o Rio de Janeiro. Eu olhava para as pessoas e via a maior parte delas miseráveis, num sofrimento incrível, depois outros com grades, porteiros, e gente toda chique a sair dos prédios, e os porteiros todos pretos e ao lado a favela. É horrível, horrível, horrível. Não consigo olhar. Ok, mas o Rio tem outras coisas, estou-me a c**** para as outras coisas do Rio quando vejo aquelas favelas e aquela gente a sofrer, estou-me a c****. Quero que o Rio se f***! Desculpa.

Sofre com o sofrimento dos outros?

Com a injustiça do Mundo. É que isto é de toda a gente, não é de meia dúzia de gajos. Não há direito. Leio e vejo… e custa-me imenso olhar, mas revolta-me muito mais saber que há uma meia dúzia de c******* a viverem à custa disto tudo e a sugarem a riqueza disto tudo e a tornarem isto tudo inabitável.

Se pudesse, o que mudava?

Só me posso indignar e bramar. Se fosse Deus, eu mudava este esquema todo, fazia umas leis e uma gestão de recursos para todos vivermos razoavelmente. Não somos todos iguais, mas um nível mínimo de dignidade e felicidade para toda a gente. Isto é uma questão de organização política. Se eu fosse Deus diria: ‘Queridos… acabou o forrobodó. Vamos pôr esta coisa a funcionar de uma forma justa’.

 

«Deixei de ter isenção de propinas na faculdade porque a PIDE descobriu que eu andava lá numas coisas…»

 

Falou em Deus. É crente?

Não. Já fui católico e tudo isso, fiz a catequese, e não acredito. Se Deus existe? É uma coisa que não me preocupa nada, quero lá saber!

Nunca o viu…

Há muitas coisas que existem e que eu nunca vi. Nunca vi a Andrómeda, a Via Láctea, o Universo, eu nunca vi, mas dizem que existe e eu acredito. E Deus, se calhar, também existe, mas não me interessa nada.

O que é que lhe interessa?

Esta conversa que a gente está a ter está a interessar-me. A vida, as pessoas de quem eu gosto, as aulas que dou…

O que disseram os seus pais quando quis ser ator?

Com 18 anos deixei de lhes pedir dinheiro e disse-lhes que ia ser ator. O meu pai disse-me que tinha de acabar o curso. Nós já tínhamos tido umas discussões muito fortes ainda antes do 25 de abril. O meu pai pôs-me fora de casa e disse: ‘Enquanto estiveres ao meu pão, pensas como eu’. E eu disse-lhe: ‘Ok, então já não estou ao seu pão’. Fui-me embora e nunca mais lá pus os meus pés. Passados dois ou três meses a minha mãe pediu-me para ir lá passar os fins de semana e eu fui outra vez.

Essa zanga teve a ver com o quê?

Com política. O meu pai era muito conservador e eu estava metido na política. Aliás, deixei de ter isenção de propinas na faculdade porque a PIDE descobriu que eu andava lá numas coisas e não sei o quê… e o meu pai era todo medroso. Os GNR foram lá a casa, porque eu tinha pedido passaporte, e queriam saber porque me queria ir embora… só porque queria fazer o Interrail. Imagina isto? Isto é inconcebível.

Mas chatearam-se porquê?

Estávamos a almoçar e começámos a falar da injustiça dos operários, dos patrões e dos ricos, e eu comecei a mandar vir e a dizer que os ricos… aquelas coisas… e ele zangou-se.

Qual era a sua posição política?

Eu era da oposição. Lembro-me que nas eleições de 73 não fui candidato, mas lembro-me que fiz a campanha da CDE (Comissão Democrática Eleitoral).

E hoje em dia é comunista?

Comunista? Não. Não sou comunista no sentido em que não sou do Partido Comunista, não sou do Bloco de Esquerda. Votei no Livre porque acho que têm uma série de ideias que eu acho simpáticas, que concordo em termos de teoria.

Para fazer a oposição?

Não! Para fazer mais do que isso. Porque é que uma gaga não pode ir para o Parlamento? Porque é que o Parlamento tem de ser para bem falantes? Pensemos. E ela [N.R.: Joacine Katar Moreira] diz muito bem: ‘Eu não sou bem falante, mas sou bem pensante’.

Chegou a acabar o curso?

Acabei o curso, peguei no canudo e fui dá-lo ao meu pai, que não disse nada. Ficou orgulhoso, claro. A partir daí, a gente nunca mais se zangou.

Alguma vez se sentiu discriminado na sua profissão?

Não, nunca.

Tendo em conta que os protagonistas são sempre bonitos, não acha que está aí algum tipo de discriminação encoberta para outros que não sejam tão bonitos, mas talentosos?

Claro que há, isso há sempre. Se quiseres a questão comercial até, eu não tenho nada contra, eu tenho contra é que seja única ou que seja a mais importante. Uma pessoa bonita vende mais do que uma pessoa feia.

Mesmo que a pessoa bonita não tenha talento…

A questão é aceitar isto… Ora, a feia tem talento, mas o talento também vende. Aquela coisa que as televisões dizem é mentira: ‘Ai, a gente faz assim porque o povo quer’. É mentira! Se lhes deres outras coisas, as pessoas entendem e pensam. As pessoas não são burras e têm sensibilidade. É o pensamento dos poderosos, dos gajos que dominam.

Nunca ficou sem trabalho?

Sim, há muitos anos, foi quando vim para Lisboa a primeira vez. Fiquei três a quatro meses sem trabalhar e fui limpar jardins para o Estoril. Vivia num quarto alugado e pensei no que ia fazer. Como percebia de agricultura, até me deu jeito. Olha, afinal, tenho um sonho: é ter uma casa com 500 metros quadrados e fazer uma horta. Agora em janeiro vou candidatar-me a ter uma horta comunitária.

Via-se a fazer outra coisa na impossibilidade de ser ator?

Claro, mas a vida é muito maior do que ser ator. Para mim, é muito maior. Ser ator é uma coisa que faço e gosto de fazer, mas e se amanhã não dá? Vou fazer outra coisa. O importante é sempre isto: é inventares-te e apaixonares-te por outra coisa. Este é o segredo da felicidade.

Em Terra Brava é o Santinho. O António de santinho tem muito ou pouco?

Acho que não tenho muito, mas não sou o pecador que vai para o inferno.

E já cometeu algum pecado de que se arrependa?

Não me arrependo de nada.

Tudo o que fez foi bem feito?

Não, não foi bem feito. Mas está feito. Penso nisso, mas o que não tem remédio remediado está. Se eu fiz m****? Fiz muita, com certeza, mas é impossível voltar atrás. Vou fazer o quê? Martirizar-me? Não! Vou dizer que foi mau, mas fui eu que fiz.

 

«Se há coisa que não me preocupa nada é ficar na história»

 

Como é que conheceu a sua mulher?

Só casei uma vez, mas tive várias relações antes. E tenho três filhos praticamente.

O que é ter três filhos praticamente?

Quando tinha 23 anos vivi com uma rapariga que era atriz e que tinha um filho com três meses. E o pai, que é conhecido, mas que eu não digo, não quis ter o filho e aquilo foi tudo muito mau… e o filho viveu comigo desde os seis meses até aos nove anos. Depois a gente separou-se. Quando o miúdo tinha 13 anos, ela foi fazer um mestrado a Inglaterra e eu fiquei com ele dos 13 aos 19. Aos 19 anos eu disse-lhe: ‘Olha, agora põe-te a andar.’ Ele foi viver com a mãe. Neste momento é casado e tem três filhos. Portanto, acho que é meu filho um bocadinho. Depois tenho um filho biológico de uma relação assim estranha também. E agora casei há dez anos e tenho uma filha de oito anos. Ela é muito mais nova que eu; ela tem 43 anos, temos uma diferença de 23 anos, e neste momento está desempregada.

Como conheceu a sua mulher?

Ui! Há 30 anos eu fiz um projeto muito engraçado numa escola secundária onde dava aulas de teatro, em Carnaxide, que se chamava Quarto Período, o do Prazer. A peça ia para vários sítios. E a minha mulher também passou por lá. Ela tinha 17, 18, 19 anos. Foi aí que a conheci.

O que é que ela fazia?

Era estudante do 12.º ano. Entretanto, a vida andou e passados dez anos voltei para Lisboa… e a gente encontrou-se. Na altura eu tinha 40 e ela 19, senti que tinha havido ali uma coisa qualquer. Eu era giro na altura, agora não sou. Era charmoso, tinha cabelo, um gajo com 40 anos se não for coxo… Dez anos depois deu-se a coisa.

E apaixonaram-se?

A gente encontrou-se, apaixonou-se e começou a andar. Às vezes tem dias maus, mas tem dias bons. É sempre assim e tentamos estar o melhor possível um com o outro.

Como é ser pai da Sara Matos na ficção?

(Risos) Ao princípio, não é que seja desconfiado, mas fico muito na expectativa, e ela estava assim com uma energia, e eu: ‘Ai, esta está aqui armada em boa, queres ver?’. Mas depois percebi que ela estava muito nervosa, muito ansiosa, muito à rasca e eu também estava um bocadinho. Sou burro velho. E depois aquilo rapidamente passou e hoje temos uma relação fantástica.

 

 

Se pudesse, mudava alguma coisa na sua vida?

Ia para uma casa com quintal. Não implantava cabelo, deixava-me careca. Às vezes doem-me as costas, se pudesse tirar essas dores…

Já foi o Melhor Ator de Teatro com a peça Vermelho e já recebeu duas nomeações para os Globos de Ouro. Estes reconhecimentos envaidecem-no?

Acho que não ganhei, acho que ganhou o Ivo Canelas. Fico contente por as pessoas gostarem e reconhecerem, mas estes prémios são o que são. Com outro júri eu não teria, sequer, sido nomeado. Foram quatro ou cinco pessoas que propuseram. É evidente.

Mas não são as pessoas que votam?

Acho que não. Acho que esses prémios têm esses lobbies, é assim. E nos Óscares é a mesma coisa, pior. Um filme que fiz no Brasil está nos Óscares. Eu estou muito contente, foi uma experiência incrível e até ganhei um prémio em Veneza. E convidaram-me para ir lá e eu não fui. Não fui porque tinha um espetáculo e tinha aulas.

Qual é a importância que Os Lusíadas têm na sua vida?

Ui. Sei lá… Acho que é uma história incrível de vida. E enerva-me imenso que tudo isso seja esvaziado e que Os Lusíadas, quer nas escolas, quer na Universidade, fiquem uma palha seca e não sejam uma coisa suculenta. E eu achava e continuo a achar que não há direito e decidi que ia fazer isso [N.R.: um espetáculo que fez, com a duração de oito horas, com intervalos a cada hora – peça para a qual levou quatro anos a preparar-se].

Comente esta frase: “Enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria que não me contentei de morrer nela, mas com ela.”

O Camões estava f***** com a pátria dele. Pátria dele que o f****, que o fez morrer à miséria, que lhe prometeu uma reforma e não lha pagou. O homem morreu, dizem, quando foi mais uma vez pedir a reforma e ao subir a calçada caiu para o lado. O Camões gostava da pátria dele, sim, e de quê? Do físico, do País e das pessoas. Vê-se isso nos Lusíadas? Ele adorava as pessoas, ele estava sempre a dizer c****** aos poderosos, aos padres, vejam o povo que está aqui a sofrer, vocês estão a comer tudo, seus cães… Ele diz isto nos Lusíadas, mas disto ninguém fala. Então, interessa o quê? A pátria, o País… vamos todos morrer pelo País, para a gente vos ficar aqui a chupar vivinhos, no palácio não sei quê. Está bem comentado?

Como é que vê a sua velhice?

Próxima. Tenho 66 anos. O que quer que lhe diga? Que não estou a pensar nisso? Vou enganar-me? Não vou dizer que vou morrer breve, mas o muro está ali à frente. Todos os anos controlo a minha saúde. Está tudo bem, sinto-me bem.

Como é que gostaria de, um dia, vir a ser recordado?

Se há coisa que não me preocupa nada é ficar na história. Só queria ser recordado no coração das pessoas a quem eu toquei. E quando elas morrerem, morremos todos.

 

Texto: Mafalda Dantas; Fotografias: Marco Fonseca

 

(entrevista originalmente publicada na edição nº 1712 da TV 7 Dias)

PUB