Dois anos depois, a parelha repete-se. Vai também repetir-se o feito?
Nuno Galopim [N.G.] – O feito é o grande trabalho da dupla?
Ou a vitória de Portugal na Eurovisão.
N.G. – É assim: por muito empenhado que possa ser o trabalho de uma dupla de comentadores, nada disso interfere com uma performance em palco e com as votações do júri e do televoto. Ou seja, uma coisa não tem a ver com outra.
José Carlos Malato [J.C.M.] – Até porque… O nosso palco é um palco completamente diferente, é uma casinha de dois metros por dois metros, nem isso.
N.G. – A caminho de um por um.
J.C.M. – A caminho de um por um, porque aquilo está a ser cada vez mais reduzido. E nós estamos ali os dois, num cantinho, com os microfonezinhos, às escuras e a ver o espetáculo. Curiosamente… Há uma exigência que nós fizemos, que é ficarmos atrás de uma coluna. [Nuno Galopim e José Carlos Malato riem-se]
«De cada vez que o Salvador cantava, eu chorava»
Porquê?
N.G. – Em 2017, nós estávamos mesmo em cima do palco, ou seja, quem estivesse na plateia e olhasse para o palco de frente, nós estávamos à direita, em cima.
J.C.M. – Portanto, nós tínhamos a melhor visão de todos os comentadores.
N.G. – Visão do palco. Mas o palco em que o Salvador [Sobral, o representante de Portugal na Eurovisão 2017, que acabou por ganhar] atuou ficava atrás de uma coluna que estava ao nosso lado.
Portanto, vocês não viram a atuação.
N.G. – Não. Nós, para podermos ver, íamo-nos revezando.
J.C.M. – Ele dizia ‘ficas tu aqui’. Depois, ia eu a correr espreitar e chorar.
N.G. – Ele voltava banhado em lágrimas.
J.C.M. – De cada vez que ele cantava, eu chorava.
Pela voz dele, pela mensagem?
J.C.M. – Não sei, por tudo.
N.G. – Havia qualquer coisa durante aquela performance que deixava a sala em silêncio. E é difícil haver silêncio durante um ensaio ou um show da Eurovisão.
J.C.M. – Era como se se estivesse a cantar o fado. É uma coisa estranhíssima. Ainda agora estou a falar disso e fico emocionado, porque havia realmente um respeito…
N.G. – E ao mesmo tempo um encantamento.
J.C.M. – É uma coisa quase religiosa, porque as pessoas olhavam para aquela pessoa tão desprovida de artefactos, de aparato, de fogo-de-artificio… Era também um ato de solidão, com ele completamente sozinho, praticamente com a plateia toda apagada e com aquela floresta atrás… Isso dava-lhe realmente um encantamento que eu não conseguia [conter a emoção]. Mesmo nos ensaios, em que ele cantava sempre de forma diferente… Muitas vezes ouvíamos a Carla [Bugalho, chefe da delegação portuguesa] a dizer-lhe: ‘Tens de cantar a forma canónica’.
N.G. – Ele [Salvador Sobral] brincava: ‘Está descansada que eu depois no show canto como deve ser’. Mas, nos ensaios, ele improvisava.
J.C.M. – De cada vez que cantava, ele acrescentava sempre alguma coisa.
Quando partiram para Kiev, Ucrânia, acreditavam na vitória ou só la é que pensaram nisso? Ou nunca pensaram?
N.G. – Não se deve partir a pensar numa vitória.
Mas quando o Salvador partiu para a Ucrânia, já ia como um dos favoritos a vitória.
N.G. – Eu não pensava nisso. De resto, a vitória era uma coisa que estava completamente longe das nossas possibilidades. Portugal nunca tinha ganhado. O melhor resultado que tinha tido era um sexto lugar, em 1996 [com Lúcia Moniz]. Pensávamos que era algo bonito, mas duvidávamos que pudesse acontecer. Percebemos, com o decorrer da semana, que uma boa classificação iria acontecer, mas a vitoria só se desenha quando estamos na final.
J.C.M. – Eu desconfiei que pudesse haver alguma coisa pelos encontrões que nos davam. Vieram ter connosco e disseram assim: ‘Qual de vocês é que vai lá em baixo fazer uma entrevista, no caso distante de haver uma vitória?’. Eu disse: ‘Tenho de ser eu’. Aquilo ficou muito bem esclarecido: ‘Então, se houver uma vitória, vêm uns seguranças buscar-te. Não te preocupes para passar, que eles até te podem levar ao colo, mas tu tens de lá estar’. Eu dizia: ‘Ó Galopim, o que é isto? Que conversa é esta?’
N.G. – Mas depois nós ganhámos e houve quem não acreditasse [risos].
O Malato não estava a acreditar…
J.C.M. – Não, porque eu sou muito mau em contas. ‘Espera, espera, espera! Mas como é que ganhámos? Ganhámos, ganhámos! Levamos o caneco para casa!’
N.G. – Sim, sim, sim, tu disseste isso.
Salvador Sobral «está de pazes feitas» com a Eurovisão
O Salvador ganhou mais do que perdeu com a Eurovisão?
N.G. – Claro que ganhou. A carreira dele só teve a ganhar com a Eurovisao, tanto para os portugueses como lá fora. Ele não tinha o reconhecimento que hoje tem – ele vai tocar à Estónia, à Alemanha… É a sua música. E isso foi o que esta vitória teve de bom. Esta vitória não colocou um artista banal no mapa, colocou um dos melhores artistas portugueses no mapa internacional. A fazer a sua música, a fazer a sua arte. Sem cedências.
J.C.M. – Agora, compreendo que, para ele…
N.G. – Ele já fez as pazes com a alguma confusão que isto lhe possa ter gerado. Já me disse que está de pazes feitas com isto, que está de bem com o festival. Foi um bom momento na carreira dele.
No seu discurso de vitória, o Salvador pediu menos «fogo-de-artificio» e mais «sentimento».
N.G. – [interrompe] Tem a ver com a sua identidade e com a sua música. A Eurovisão vive do sentimento e vive do fogo-de-artificio. As duas coisas fazem parte.
O Salvador tinha fogo-de-artificio?
J.C.M. – Eu acho que ele tinha fogo-de-artificio… Eu vou dizer uma coisa estúpida, mas acho que a simplicidade pode ser uma coisa gigantesca, pode equivaler a um fim de ano na Madeira. E isso só acontece com os grandes artistas.
N.G. – Mas as duas coisas convivem na Eurovisão. Há canções que precisam de mais ‘mise en scène’, há canções que bastam a si próprias na figura de quem as canta e interpreta.
J.C.M. – Aquilo é um show.
N.G. – Não nos podemos esquecer nunca de que aquilo é um programa de televisão. Cada canção precisa de uma imagem. Aquela não precisava mais do que aquilo. Estava lá tudo. Outras, sem dúvida, precisavam de muito mais.
Então, a vitória da Netta, no ano passado, não vos surpreendeu.
N.G. – Não, a vitoria da Netta é naturalíssima. As pessoas ficaram muito incomodadas com a música porque não perceberam aquilo que a musica queria dizer.
O próprio Salvador ficou quando disse que a canção era «horrível».
N.G. – É uma questão de gosto. O que eu acho horrível pode ser o que a pessoa ao meu lado adora.
J.C.M. – Essa diversidade…
N.G. – A diversidade é o que faz a Eurovisão. Em primeiro lugar, comunica, sobretudo, para um público mais jovem. Qual é público principal da Eurovisão hoje em dia? O público mais jovem. Em Portugal, há uma perceção de que a Eurovisão é uma coisa antiga e envelhecida. ‘Wrong, totally wrong’ [‘Errado, totalmente errado’]. As melhores camadas de audiência de hoje em dia da Eurovisão, à escala de toda a EBU, são o público dos 15 aos 24 e dos 25 aos 34 anos. Depois, a Netta é uma rapariga que fala sobre ser bonita mesmo não sendo necessariamente o paradigma da beleza, da magreza.
J.C.M. – É, também, uma música inclusiva.
N.G. – É, esse valor comunicou-o. Com uma música diferente, mas com uma mensagem igualmente muito forte, com a qual as pessoas se relacionaram. Com o Salvador, mesmo não percebendo as canções, as pessoas identificaram-se com qualquer sensação que estava a brotar dali, que mexia, que emocionava as pessoas. A Netta foi o poder daquela mensagem: somos todos bonitos independentemente de como podemos ser.
«Os portugueses descobriram as casas de apostas há dois anos e agora acham que aquilo é a bíblia. Não é»
O que esperam da participação do Conan?
N.G. – Acho que vai ser uma grande participação. Não quero dizer, neste momento, quais são as minhas preferências, mas há três grandes canções na Eurovisão deste ano.
J.C.M. – Pois há.
N.G. – E uma delas é a Telemóveis.
Mesmo que isso não se reflita nas casas de apostas?
N.G. – As casas de apostas são um indicador de comportamentos e, até nós chegarmos à semana dos shows, vivem muito das reações dentro da bolha dos jornalistas que lá estão, que são, na verdade, mais bloggers especializados na Eurovisão e mais jovens do que necessariamente a representação de um grande público. As casas de apostas são um indicador, só que os portugueses descobriram-nas há dois anos e, agora, acham que aquilo é a bíblia. Não é. É um indicador, não é uma ciência, não é uma matemática. Não há aqui uma arte divinatória. São tendências. As coisas podem mudar.
«Conan Osíris é único. Não há ninguém igual a ele»
Acreditam que ele passe à final?
N.G. – Tudo depende de uma boa performance, que eu acredito que vai acontecer, e da capacidade do júri e do televoto aderirem à canção. Mas isso é valido para a canção portuguesa e para todas as outras. Não há certezas de antemão.
O que o diferencia?
N.G. – Identidade. É único. Não há ninguém igual a ele. Ele não copia ninguém, ele é uma soma de experiências, é uma soma de relações vivenciais do próprio, de gostos, de experiências. E é único.
J.C.M. – Uma vez perguntaram à Amália [Rodrigues]: ‘O que é que a senhora trouxe para o fado?’. E ela disse: ‘Trouxe-me a mim’.
N.G. – Tal e qual
J.C.M. – É o que acontece com o Conan. O que é que ele trouxe à música? Trouxe-se a ele. Tal como o Salvador se trouxe a ele próprio.
N.G. – São artistas, apesar de tudo, muito mais parecidos do que diferentes.
Era o vosso favorito do Festival da Canção?
J.C.M. – Quando ouvi a canção, disse imediatamente que ele ia ganhar.
N.G. – Eu, durante meses, não quis dizer, porque trabalhei diretamente dentro do Festival da Canção, mas a minha canção preferida era a da Surma [Pugna].
«Os comentadores são os principais embaixadores de um bom voto»
Já conhecem Telavive, Israel?
N.G. e J.C.M. – Não, não.
Nestas experiências, há tempo para se ser turista?
J.C.M. – Não temos, não temos.
N.G. – Nós, em Kiev, fizemos um único passeio. Isto porque, antes dos [três] ensaios [de cada fase do evento], temos uma reunião entre os colegas comentadores dos outros países para nos serem explicadas todas as questões. É bom termos este contacto.
J.C.M. – E outra coisa. Repare: nós, nessas reuniões, curiosamente, tínhamos muita gente a dizer-nos ‘Parabéns! Se não ganharmos, queremos que ganhem vocês’. E isso também influencia, digo eu…
N.G. – Os comentadores são os principais embaixadores de um bom voto.
Isso é muito interessante.
N.G. – É, é, porque o comentador comentador é quem, na emissão do respetivo país, apresenta a canção, ou seja, nós também vamos fazer relações-públicas com os nossos colegas. Eu já tenho uma caixa com CDs para oferecer um a cada um. Falo com todos e passo o tempo inteiro a vender a nossa canção. O artista de quem o comentador gosta é o artista de quem o comentador fala bem.
Última pergunta: como é que olham para o desinteresse do Conan Osíris quanto aos apelos ao boicote da Eurovisão [Mais de 40 artistas portugueses, o músico britânico Roger Waters – um dos fundadores dos Pink Floyd -, o Comité de Solidariedade com a Palestina, o SOS Racismo e as Panteras Rosa o fizeram. Citado pelo Público, o cantor disse: «É o que se vê. Toda a gente tem o seu conteúdo, certo? Não sou uma pessoa muito de notícias»]?
N.G. – Eu não sou o Tiago [Miranda, nome de batismo de Conan Osírs], eu não faço a mínima ideia o que ele pensa. Longe de mim, alguma vez, estar a comentar o que outra pessoa pensa sobre o que quer que seja.
Mas entende os apelos e entende a posição do Conan?
N.G. – Eu não sou o Tiago. Não consigo responder por ele, essa é uma questão que deve ser colocada a ele e não a mim. Nem ao Zé Carlos.