«Enormíssimas antenas de comunicação caídas no meio da estrada. Passeios rasgados por raízes de árvores. Árvores centenárias, com troncos que se julga que nada pode atingir, caídas no chão». O relato – impressionante – faz adivinhar o ambiente calamitoso que tomou conta da cidade da Beira, Moçambique, e é feito, na edição desta semana da TV 7 Dias, pela jornalista Conceição Queiroz, nascida naquele país há 45 anos e enviada pela TVI ao local para acompanhar a tragédia provocada pela passagem do ciclone Idai.
No regresso ao primeiro chão que pisou, a jornalista do canal de Queluz de Baixo diz ter sentido «um choque tremendo», apesar de se ter mentalizado para o que a esperava. «Quando lá cheguei, tive outra noção. Estando no terreno, as coisas acontecem à minha volta, enfrento dificuldades e tenho obstáculos para vencer um dia de trabalho…», recorda, já em Portugal, mas ainda com as emoções à flor da pele.
As dificuldades no terreno foram muitas: «Imagine o que é não ter Internet, não ter rede, não ter telefone… A certa altura, fiquei sem telemóveis, porque fui a Búzi (na província de Sofala), um dos distritos mais atingidos, e, nesse percurso que fiz a atravessar o rio, apanhámos uma zona de maré alta e entrou imensa água pelo barco – eram barcos de borracha. Fiquei sem telemóveis, o pessoal e o da TVI.» As comunicações para o nosso país, nomeadamente para a estação, passaram a ser feitas pelo telemóvel do repórter de imagem que a acompanhou a Moçambique, João Gabriel, com quem a jornalista tem «uma relação perfeita».
Certo é que, nessa altura, já Conceição Queiroz conseguia respirar de alívio quanto à sua família. É que a jornalista, ainda em Portugal, esteve praticamente quatro dias sem saber do paradeiro das suas duas irmãs que vivem na Beira: Anabela e Dina. A primeira, de 47 anos, vivia numa «casa em frente ao mar». Era, por isso, o caso «mais preocupante». «O que ela fez foi antecipar-se. No dia da tempestade, 14 de março, deixou tudo, pegou na família, inclusivamente no meu tio de 83 anos, o irmão mais velho do meu pai, e foram para outra cidade», relata o rosto da Informação da TVI. «Ela deixou uma vida para trás», numa viagem de, «para aí, três horas, feita debaixo da tempestade», sublinha.
«Renascer das cinzas»
Os efeitos do ciclone Idai roubaram tudo a Anabela, que se vê agora obrigada a «começar de novo». Ou a «renascer das cinzas», como também diz Conceição. «Um dos postes de energia em frente à casa dela ficou completamente caído no chão. Ainda hoje ela está sem luz. Parte do telhado voou. Está tudo alagado. Foi para a casa de uma das filhas, enquanto tenta reconstruir a dela», lamenta a jornalista, para a seguir revelar: «A primeira coisa que ela me disse foi: ‘Estou viva!’. Foi uma emoção tremenda, arrepiante!»
Em ocasiões como estas, chega-se a temer o pior? «Tive um único rasgo negativo, não vou mentir», confirma Conceição Queiroz, em relação ao paradeiro da outra irmã. Ao contrário de Anabela, Dina, de 48 anos, «não vive junto ao mar». «Passou-me pela cabeça: ‘Caramba! O que é que se passa?’. Tive um momento de quebra, mas logo a seguir tive outro rasgo que me fez pensar: ‘Não, nem pensar! É claro que eles estão bem, estão apenas incontactáveis. Devem estar em casa’. E foi exatamente isso: estavam em casa, fechados, sem comunicação, sem água, sem luz, sem rede, sem nada. A sentirem os vidros a partir-se à sua volta e a casa a inundar-se, mas permaneceram em casa. Ela, o marido e a filha. Foi um terror», revela. Para Dina, este «também acaba por ser um momento de recomeço, apesar de a casa ter sofrido menos» estragos.
As dúvidas quanto ao paradeiro das irmãs já se dissiparam, mas, durante aqueles quatro dias de sobressalto interior, Conceição Queiroz viveu-as intensamente em direto para milhares de portugueses, através da TVI24. «Estive sempre a trabalhar. À frente das câmaras e, pior, a fazer diretos para Moçambique, a ouvir a descrição do que se estava a passar, a ouvir que o Aeroporto Internacional da Beira estava encerrado. Acompanhei tudo isto em estúdio, sem que ninguém soubesse, tirando os colegas da régie», ressalva à TV 7 Dias. «Aí, tive mesmo de separar as águas, ou desabava por completo. Tive de me segurar e consegui fazê-lo», afiança.
Para isso, muito contribuiu o apoio que a pivô recebeu nos corredores da TVI. «Incrivelmente apoiada e muito suportada pelos colegas», Conceição Queiroz só tem a agradecer. E dá como exemplo um episódio vivido no ar: «Cheguei a perguntar ao realizador quanto tempo de intervalo tínhamos para eu calcular o tempo que tinha para tentar ligar novamente para Moçambique. Estava muito apreensiva, naquela ansiedade de ter notícias. E o realizador impecável. Quando eu não perguntava, ele dizia ‘Olha, esta peça tem dois minutos. Dá para ligares, se quiseres’ ou ‘Olha, o intervalo tem nove minutos. Dá perfeitamente’.»
A jornalista confidenciou também ao Diretor de Informação do canal, Sérgio Figueiredo, o pesadelo que vivia com a falta de informações sobre a família. «Ele confortou-me muito, muito, muito. Foi inclusivamente ele que me deu a ideia de ligar para um banco de cá, que tem uma sucursal em Moçambique, onde trabalha uma das minhas irmãs. Foi incrível. Havia uma preocupação real», reconhece.
Chorou? «Era inevitável»
A ideia de Conceição Queiroz ser a correspondente da TVI em Moçambique, onde acabou por estar quase duas semanas, «no pico da tragédia», «partiu dos dois lados», admite a jornalista à TV 7 Dias. «Eu disse que estaria disponível caso decidissem enviar alguma equipa para lá», recorda. O convite logo chegou.
Durante a estada no seu país natal, a jornalista não aguentou o confronto com a dura realidade e chorou. Várias vezes. «Era inevitável. Quando voltava ao hotel e me deitava, por volta da uma da manhã, duas, era inevitável», confessa. O facto de ter desabado em lágrimas «é sinal de que não somos um robô, apesar de sermos jornalistas. É sinal de que, acima de tudo, somos humanos.»
Em sinal de compaixão pelos outros, foram muitas as «latas de atum e barras energéticas» que Conceição levou para si e que foi distribuindo pelos compatriotas. Sobretudo a crianças, mas também, por exemplo, «às senhoras que trabalhavam no hotel» onde ficou hospedada: «Elas pediam-me coisas que viam no meu quarto. Até uma rede mosquiteira e um repelente». A unidade hoteleira, essa, apesar de ser de «referência», «não tinha luz» e só voltou a tê-la «ao terceiro, quarto dia» da sua permanência. Um sinal claro, faz questão de constatar a profissional da TVI, de que «ninguém em Moçambique pode dizer que não foi atingido» pelo ciclone Idai.
«No centro da epidemia»
Conceição Queiroz constatou isso mesmo nos vários trajetos que fez pela Beira. No centro e «nos bairros periféricos da cidade, onde fiz questão de entrar», nomeadamente «no mais populoso de todos» e «naquele onde dizem que o índice de criminalidade é o maior». «No centro da epidemia», portanto. «Fiz um direto para o Jornal das 8 num desses bairros e eles quiseram levar-me para o interior. Disse: ‘Agora é tarde, está escuro. Vocês não têm luz lá dentro. Não vou ver nada, nem conseguir filmar. Vamos combinar para amanhã’. Eles não acreditaram, acharam que era conversa: ‘Amanhã, não vem…’. ‘A sério que venho. Raramente faço promessas e, se prometo, vou cumprir’. No dia seguinte, eram oito da manhã e estávamos lá», partilha, garantindo ter vivido essa experiência «sem medos».
E continua: «Aquela gente estava ali sentada, naquele chão de terra batida. Cheguei e levantaram-se: ‘Ah, a Conceição!’. Foi um momento de emoção grande, em que senti que seria uma desilusão, ou mais uma desilusão das promessas que várias pessoas passam por ali e fazem. Senti uma alegria tão verdadeira e tão real quando cumpri o que tinha prometido.»
A jornalista reconhece, contudo, que a visita àquele bairro foi arriscada: «Com as pessoas agora com fome, é natural que comece a violência. Elas têm de sobreviver. Há um perigo sempre iminente quando se vai para o interior dos bairros, que eu, felizmente, não senti verdadeiramente. Estive lá e não me aconteceu nada. Estou aqui de novo, graças a Deus.»
O reencontro com as irmãs
Só no seu último dia em Moçambique é que Conceição Queiroz se reencontrou com a família, num jantar em que não houve espaço para lamúrias, apesar de motivos não faltarem. «Foi uma alegria, a festa de sempre. Festejamos sempre, celebramos a vida constantemente. E aquela foi mais uma celebração da vida. Nem falávamos do ciclone. Eram só as nossas brincadeiras e as nossas risadas, a brincar com a situação. Incrível.»
A jornalista não duvida de que regressou a Portugal uma mulher diferente. E já com o sentimento de retornar à sua pátria: «Sei que vou voltar. Não sei se será em trabalho, talvez não. Voltei com essa certeza, porque ficou muita coisa por dizer, por fazer».
Mais de 600 mortos confirmados
A passagem do ciclone Idai por Moçambique já ceifou a vida de 602 pessoas e ferido mais de 1600. A quantidade de afetados é desmesurada: mais de 1,5 milhões. Ao número de vítimas mortais registadas, acrescem sete, provocadas pelo surto de cólera que irrompeu naquele país. Há mais de quatro mil pessoas infetadas por esta doença, contra as mais de 745 mil que já foram vacinadas.
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Texto: Dúlio Silva | Fotografias: arquivo Impala e reprodução TVI