Um 25 de Abril diferente: humoristas refletem sobre a Liberdade em tempos de pandemia

Humoristas e guionistas aceitaram o convite da TV 7 Dias para refletir sobre o 46º aniversário da Revolução de Abril. Um Dia da Liberdade celebrado em isolamento social.

25 Abr 2020 | 11:50
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António Raminhos, Ana Arrebentinha, Eduardo Madeira, Herman José, Luís Filipe Borges e Susana Romana aceitaram o convite da TV 7 Dias para elaborar uma reflexão sobre a liberdade em tempos de pandemia. O 46º aniversário da Revolução dos Cravos celebra-se este sábado, 25 de abril, em circunstâncias únicas, consequência da pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Herman José

Tão irónico, festejar o dia da liberdade, na minha fase menos livre de sempre. Prisioneiro de um carrasco invisível, acho que nunca dei tanta importância ao privilégio de poder “ter um livro para ler e não o fazer”. Neste Abril, resta-nos festejar o sonho de sabermos que, mais tarde ou mais cedo, voltaremos a ser um “povo unido”. Nem que seja para barafustar e discordar.

 

Eduardo Madeira

Liberdade é imaginar e viver o Mundo como uma criança. E usar uma máscara e fingirmos que somos o Zorro enquanto enchemos a boca de pudim e rimos. A liberdade é lavarmos as mãos e imaginarmos que somos um Jedi a eliminar extraterrestres safadões escondidos entre o polegar e o indicador.

Liberdade é idealizarmos uma forma de, mesmo em tempo de pandemia, viajarmos pelo mundo a ler um livro sobre a Patagónia ou a ver um filme sobre o Evereste. E, pelo meio, falar isso tudo aos nossos filhos, amigos, pais e avós para que eles sintam um abraço e um beijo fraterno e repenicado na alma através das palavras. Viva a liberdade!

 

Ana Arrebentinha

«Olá, sou a Ana Arrebentinha, tenho 26 anos, sou humorista, atriz, criativa, e no ano 2020 fui obrigada a ficar em casa, não porque quisesse mas, porque foi o meu dever civico.»

Nunca pensei pensar, nem dizer, nem escrever isto….  Mas nem tudo é mau. Fiquei a saber que como em média 300 vezes por dia, bebo mais de 10 litros de água e outros tantos de vinho, já dei por mim a queimar três pseudo pães, dei por mim a encomendar material desportivo para me manter ativa e resultou… os cinco primeiros dias.

E pensei ‘vou aproveitar para descansar’. O meu cérebro decidiu reunir os seus 86 biliões de neurónios e convocar uma festa às 8h30 da manhã todos os dias. Dou por mim a marcar jantaradas até com pessoas que nem queria. «Quando isto acabar vamos jantar, vamos mesmo!», e penso porque é que eu digo isto e aí percebo que estou a acusar a pressão do isolamento social.

Mas vamos lá ver: no meio deste filme temos de agradecer. No tempo dos nossos avós as cartas eram o meio de comunicação, o único meio, levavam semanas, meses para obter a resposta da pessoa amada e, às vezes, nem uma resposta obtinham. Hoje em dia temos a opção de ligar o nosso telemóvel e ligar por voz ou vídeo, ou até mesmo bloquear e encontrar outra pessoa. Temos a opção de trabalhar em casa ou até mesmo de enganar o chefe, temos a opção de gravar os nossos vídeos de comédia…

Eu pessoalmente estou a trabalhar em casa. Gravo o meu programa, envio, depois ligam-me a dizer que o vídeo está todo desfocado e eu penso que o que importa é participar. Temos liberdade uma liberdade diferente mas ela existe, podemos falar o que pensamos, escrever o que pensamos, podemos dançar, podemos ouvir a música que gostamos, podemos opinar política e socialmente.

E essa liberdade permite-nos cuidar de nós e dos outros. Depois de dizer nada e de dizer tudo era para escrever sobre o quê?

Luís Filipe Borges

 

25 de Abril Simbólico Sempre

Algés. Dia 43. A mulher está feliz da vida. Em tele-trabalho das 10h às 19h, capaz de dois treinos online por dia, atarefada em refeições veganas, e satisfeitíssima porque – e passo a citar – o marido “não vai a lado nenhum”. Na restante família os papéis inverteram-se: a cadela Indie já não nos pode sofrer (como sentir saudade dos donos se eles estão sempre em casa?) e o gato Haruki anda mais fofo do que nunca (talvez por ter os servos sempre à mão).

Para bem da sanidade mental, reduzi desde o início do confinamento as notícias ao mínimo. Dessintonizei a CMTV da lista de canais; só vejo pivôs de informação a disputar o campeonato de “Walter Cronkite de Corroios” através de partilhas nas redes sociais; donde elimino qualquer propagador de pânico ou fake news. De resto, vou buscar a minha informação a 3 sites fidedignos de notícias e vejo religiosamente às 17h o briefing diário do Director Regional de Saúde dos Açores – o eloquente, sereno e extraordinariamente bem informado enfermeiro Tiago Lopes. Ah, à noite gosto de picar a CNN, apenas pelo perverso consolo de constatar que há quem esteja muito, mas terrivelmente muito pior do que nós.

Sobre o 25 de Abril não entro em discussões fúteis sobre cerimoniais. A Sara e eu gostamos de descer a avenida e essa será uma das actividades que manteremos, juntando-se ao rol de duas idas ao supermercado, uma à farmácia, e passeios nocturnos da cadela (o total de planos exteriores destes 43 dias de quarentena). Se as autoridades deixaram, claro, isto é o que faremos: sair da garagem, o Zeca acomodado no rádio, alguns simbólicos cravos connosco, e cantaremos o “Grândola” enquanto descemos a Liberdade. Se não for possível aí, seremos os dois loucos em altos berros desde o interior do veículo noutras ruas e vielas da capital.

O vírus não se coaduna com prazos de validade e é bom que percebamos que o Novo Normal implica uma ruptura com tudo o que fizemos, conhecemos e nos habituámos até aqui. Estar separados é a melhor forma de estarmos juntos. E antes poder dar plenos pulmões à “Vila Morena” do que ao “Eles Comem Tudo e Não Deixam Nada”.

 

Susana Romana

Nasci depois do 25 de Abril, mas numa casa com autocolantes com a cara do Salgueiro Maia colados no roupeiros dos meus pais. Tomei este modelo de decoração e hoje, ironicamente, trabalho em casa de frente para um poster que me garante que “a Poesia está na rua”. E logo agora, que não posso ir lá fora. Tenho a certeza de que sem o 25 de Abril a minha vida era muito diferente. É, aliás, assim que resolvo as discussões familiares com aquele tio que insiste em dizer que antes é que era bom: se estivéssemos no antes, eu estava presa. Agora estou fechada em casa, mas a ideia de Abril lá fora ajuda a que tudo pareça passageiro. Acho que não foi à toa que fizemos uma revolução na Primavera.

António Raminhos

Não eram poucas as vezes em que, em criança, enquanto jogava à bola a mandar boladas à parede, ouvia um velho gritar: «no tempo do Salazar é que era!». Expressão que, ainda hoje, alguns aplicam quando, de algum modo, a «coisa»  abana as suas crenças, incomoda o tempo livre ou para relembrar épocas de pouca abundância.

No meio disto de estar fechado em casa, dei por mim a pensar. Grande parte de nós vai ser o novo velho do Restelo. O pessimista, que se esqueceu do sofrimento alheio, exibindo excelsa verborreia para condicionar as hostes. Só que em vez de usarmos o «no tempo Salazar é que era», daqui a uns 40 anos vamos estar a clamar aos céus: «no tempo do Covid é que era!».

Já me estou a imaginar, numa esplanada, a ver dois adolescentes aos beijos e dizer: «Olha para isto! No tempo do Covid nem se chegavam ao pé um do outro! Que pouca vergonha só a passarem secreções e aposto que nem lavaram as mãos!»

E, ao meu lado, a minha mulher, olha para mim e exclama: «E já reparaste? Pediram sandes de atum! Mal sabiam que ao fim de três semanas já estávamos fartos!” E depois olhamos um para o outro e sorrimos. Sorrimos, porque nem de perto nem de longe estar de quarentena é um sacrifício comparado com quem viveu a ditadura. Nem de perto nem de longe, estar de quarentena é ser refugiado a escapar de um regime. Nem de perto nem de longe, viver na quarentena é ser torturado por querer ser livre. Uns passarão este momento melhores do que outros. É como tudo! Mas ainda assim, não tenho dúvidas quando as minhas filhas começarem a sair à noite e a chegar de madrugada vão ouvir: «No tempo do Covid estavam fechadinhas em casa que era uma maravilha!»

 

Fotos: Arquivo Impala e redes sociais

 

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