Ana Bacalhau é uma das novas caras do “Ídolos”. A vocalista dos Deolinda já tinha recusado ser jurada de um talent show, mas a vontade de assumir este papel era muita. Moldada pelo bullying que sofreu na infância por ser “gorda” e por ter o apelido que tem, a cantora, que já foi arquivista do Ministério das Finanças, abre o seu “coração de manteiga” à TV 7 Dias e fala ainda da ‘nega’ que levou no “Chuva de Estrelas”.
TV 7 Dias – O que tem de ter o próximo Ídolo de Portugal?
Ana Bacalhau – É uma receita em que há sempre um ingrediente que não sabe bem qual é. Certamente, terá de ter talento, muita capacidade de trabalho e aprendizagem, algum tipo de carisma e uma boa performance. Depois, também tem de existir um clique que se faz com o público e que não se sabe bem de onde vem.
Um ídolo pode não ter necessariamente a melhor voz?
Pode. O Bob Dylan é um excelente exemplo disso. Para mim e para muitos, o Bob Dylan é um dos grandes ídolos e não tem a melhor voz do Mundo. Mas isso não é relevante, porque tem tantas outras coisas… Ele é icónico e as pessoas ligam-se a ele emocionalmente e racionalmente. Portanto, para mim, um ídolo não tem de ter a melhor voz. Tem de saber utilizá-la da melhor forma.
A Ana Bacalhau sempre teve essas características?
Não me cabe a mim dizer… O que posso dizer é que tenho um instrumento competente, que me permite fazer o que gosto de fazer. Estou sempre a tentar aprender mais sobre como o dominar melhor, estou sempre a aprender como passar bem a mensagem das canções… Em palco, sinto que estou bem, porque as pessoas vibram comigo e com o que faço. Fora do palco, sou uma pessoa mais discreta mas, quando estou a conversar, sou croma o suficiente para as pessoas se lembrarem de mim [risos].
Já tinha essas características quando se inscreveu no Chuva de Estrelas?
Nessa altura, estava na faculdade e tinha uns 19, 20 anos. Não cantava tão bem. Em termos de palco, também estava a aprender. Mas já tinha aquelas ganas e já era meio croma.
Em que foi importante a nega que recebeu nesse programa?
Foi muito importante. Para já, porque até eu me prestar a ser avaliada por outras pessoas que não família e amigos era tudo ótimo. Quando cheguei lá e levei um não, percebi que não era assim tão ótimo. Isso foi bom para eu melhorar e procurar aquilo que não é tão bom em mim.
Essa nega não a levou a equacionar desistir do sonho?
Não, porque eu queria mesmo aquilo, era o meu objetivo máximo de vida. Deixou-me triste, claro, mas a pensar: “O que me falta?”
Já tinha a certeza de que ia conseguir.
Eu tinha a certeza de que ia conseguir, o que não sabia é se conseguia [risos]. Também há um fator de sorte, que é quando tudo se conjuga no momento certo…
Vinte e cinco anos depois, é a Ana Bacalhau a dar sins e nãos no Ídolos. Sente mais responsabilidade quando dá um sim ou um não?
Sinto responsabilidade nos dois momentos. Mas custa-me mais dar um não, porque não sei qual será a reação da outra pessoa. Se essa pessoa tem a certeza de que quer fazer música, não quero que ela esmoreça o suficiente para pensar em desistir. Quero é que o abanão a leve a tentar melhorar.
A Joana Marques diz que tem um “coração de manteiga”…
Tenho, tenho… [risos] E tenho uma certa espontaneidade que gosto de cultivar, porque é a minha maneira de ser e tento sempre ser fiel a mim. Na minha vida, tento ser fiel a quem sou, apesar de às vezes até nem adorar ser quem sou. Mas a minha verdade é a única coisa que tenho.
Nem sempre adora ser quem é?
Nem sempre. Vejo-me e digo: “Eh, pá, ó Ana… Não adorei”. É quase um exercício masoquista, porque procuro ver-me e ouvir-me em palco e estou sempre a analisar o que fiz mal, às vezes o que fiz bem… Mas nunca é muito fácil entusiasmar-me com o que fiz bem, porque estou sempre a olhar para o que fiz mal. São mais as vezes em que não gosto do que as que gosto.
E imaginava-se no papel de jurada de um talent show?
Já há algum tempo que tinha curiosidade em fazer isto, porque gosto muito de concursos de talento. Sempre vi e sempre gostei muito. Quando o Daniel Oliveira me convidou, disse logo que sim.
Ana Bacalhau sobre o “Ídolos”: “Vou defender a minha dama”
Já tinha recebido algum convite para ser jurada de um programa?
Sim, no início dos Deolinda. Tive um convite só que, como os Deolinda explodiram, eu tinha cento e tal concertos por ano e era impossível aceitar.
O “Ídolos” é o melhor talent show?
[Risos] Eh pá, vou defender a minha dama! Na verdade, o Ídolos tem uma coisa muito interessante: o percurso. Não se está sempre no mesmo palco, passa-se por várias fases… Há uma evolução muito engraçada que é só do Ídolos e que é uma mais-valia.
Quando era criança, passava a vida a cantar?
Passava a vida a ouvir música e a dançar. Não gostava de me ouvir cantar, porque tinha uma voz agudinha e irritava-me. Depois, na adolescência, peguei na guitarra, comecei a cantar por cima da guitarra e, aí, já me dava mais prazer cantar.
Eram a música e a dança que a distraíam dos episódios de bullying de que foi alvo?
Sim. E a escrita. Eu escrevia muito. Eram as minhas formas de expressão, de criar mundos diferentes daqueles em que eu estava e que não era tão simpático. Ajudavam-me a ter mais confiança em mim.
Sofreu bullying por causa do seu apelido?
Por isso e por ser uma criança gorda. Uma coisa não ajudava a outra… Foi um despertar duro para a realidade.
Numa altura em que ainda não se falava em bullying.
Não, não. Eram só miúdos a gozar com outros no recreio.
Ficaram marcas desses episódios?
Como eu costumo dizer, quando se amarrota uma folha de papel, por mais que se alise, ficam sempre lá marcas, não é? Sim, há sempre uma certa insegurança. Apesar de as pessoas me acharem muito extrovertida, sou bastante introvertida e tenho alguma ansiedade em ocasiões especiais em que não seja para estar em palco. Mas eu olho para a criança que fui e sinto uma certa paz. Faz parte do meu percurso.
E perdemos uma grande professora de Português e Inglês?
Não sei se seria boa. Certamente, seria esforçada [risos]. Ainda estudei para isso e tenho competências e aptidões para o ser. Acho que tenho um dom na vida: a comunicação. Eu achava que esse dom seria exercido através do ensino, mas a vida trocou-me as voltas e exerço-o através da música. Mas quem sabe se não serei professora… Gostaria muito de transmitir o que aprendi na vida. Não direi ser professora de Português e Inglês mas, se calhar, gostaria de ensinar performance, interpretação…
Jurada do “Ídolos” trabalhou como arquivista
Como vai parar à função de arquivista do Ministério das Finanças?
[Risos] Enquanto a música não dava, tentei lutar e achar algo que fosse próximo daquilo que eu gostava. Tirei uma pós-graduação em Arquivo e, assim que abriu uma vaga para o Arquivo Contemporâneo do Ministério da Finanças, concorri e fiquei. Lá, tinha o meu lado mais calminho. Quando saía, ia para os ensaios dos Deolinda e, aí, extravasava.
O que faz uma arquivista do Ministério das Finanças?
Por exemplo, micro-filmamos e digitalizamos livros de impostos que já foram extintos, dos anos 70 e 80, para memória futura. Trabalhei lá durante quatro anos, até os Deolinda explodirem.
Em 2017, o grupo decido fazer uma pausa e Ana lança-se numa carreira a solo. Foi fácil tomar essa decisão?
Não foi uma decisão minha, foi uma decisão a quatro. A minha ideia era ter uma banda e, depois, ia fazendo umas coisas por fora. Mas depois, um bocadinho antes de o meu primeiro disco a solo sair, o Pedro e o Luís manifestaram a intenção de fazer uma pausa, porque eles também tinham coisas para fazer. E, então, decidimos fazer uma pausa.
Algum dia voltarão?
Quando os quatro manifestarem vontade de voltar, voltaremos. Para já, ainda não aconteceu.
E a sua filha já canta muito?
A Luz é muito afinadinha, canta muito, mas calma… Já foi ver um ou outro concerto, mas tem a cena dela e está na onda dela…
Com uma mãe e um pai na música, se ela lhe disser que quer seguir o caminho dos pais, vai incentivá-la?
Ela vai fazer o que ela quiser. Eu apoiá-la-ei no que ela quiser fizer. Se for na música, será fixe, porque eu já sei as coisas más que ela pode encontrar no caminho e, assim, alertando-a.